quinta-feira, 28 de outubro de 2010

UM HOMEM INTERESSANTE

Foi em janeiro de 1988, era muito jovem, recém formada, era médica residente do primeiro ano de cardiologia do Hospital dos Servidores do Estado de São Paulo (HSPE), um dos maiores da América Latina com cerca de mil leitos, estava iniciando o estágio no serviço de Moléstias Infecciosas (MI) que ficava no 13° andar.
Vivíamos o auge da epidemia da AIDS, praticamente todos os pacientes internados naquele andar eram portadores da doença.
A MI como nós chamávamos era um dos melhores serviços do hospital e do Estado, era muito limpo e organizado, tinha reuniões científicas de discussões de casos toda semana, o chefe do serviço na ocasião era o Dr. Vicente Amato Neto, médico infectologista famoso, autor de livros e muito conceituado.
Após a reunião de boas vindas com os novos residentes, a médica residente do 2° ano que me orientava, me disse: vá examinar este paciente, colher a anamnese, ele é irmão do Henfil e é um homem interessante. Ao dizer isto, me veio à mente apenas as imagens engraçadas do cartunista do jornal.
Peguei o prontuário do paciente Herbert José de Souza, entrei no quarto e me apresentei, era um senhor que aparentava ter 50 anos, pequeno, magro e com os dentes grandes, dócil, foi gentil respondendo as minhas perguntas. Eu queria saber a quanto tempo estava doente e como soube que era portador do vírus HIV. Não me ative a pessoa, pois não sabia nada sobre ele, queria saber apenas os dados relevantes à patologia que ele apresentava.
Então ele me disse que era hemofílico, ele e seus dois irmãos, que recebia transfusões de sangue desde criança e que seus irmãos já haviam contraído a AIDS, que ele já vinha fazendo exames para detecção do vírus. A sua preocupação era a de que existiu um período que ele provavelmente já tinha o vírus e os exames de anti HIV davam negativos, foi necessário fazer outro mais específico para confirmar que era portador. Disse ainda, o indivíduo pode ser portador e não sabe, faz o exame e ele se mostra negativo, pode assim transmitir o vírus a outras pessoas.
Levei o caso para discussão com os outros colegas, eles demonstraram a preocupação com o período denominado de janela imunológica (tempo entre a infecção inicial e o desenvolvimento de anticorpos detectáveis contra a infecção), ele é variável e pode levar 3-6 meses para soroconversão e teste positivo. A detecção do vírus usando a reação em cadeia da polimerase (PCR) durante o período de janela é possível e as evidências sugerem que uma infecção pode ser detectada mais cedo do que quando se utiliza os testes rotineiros.
Só algum tempo depois pude conhecer melhor a sua história e não somente a da doença, como a da música que ouvia muito na infância, na voz de Elis Regina: “Meu Brasil / que sonha com a volta do irmão do Henfil / de tanta gente que partiu...”, feita em sua homenagem na época da campanha pela Anistia.


UM POUCO SOBRE BETINHO

Betinho como ficou conhecido, era sociólogo, nasceu em Bocaiúva, norte de Minas Gerais em 03/11/35 e faleceu em 09/08/97, foi ativista dos direitos humanos brasileiro. Ele costumava dizer: "Eu nasci para a desgraça, porém com sorte”.
Seu pai trabalhou em uma penitenciária e em uma funerária. Sua formação teve grande influência dos padres dominicanos, foi membro da JEC (Juventude Estudantil Católica).
Manifestou-se contra o golpe militar de 1964, em 1971 foi obrigado a se exilar no Chile, lá assessorou Salvador Allende até este ser deposto em 1973. Morou depois no México e no Canadá.
Em 1979 retornou ao Brasil, passou a se dedicar à luta pela reforma agrária, sendo um de seus principais articuladores. Betinho também integrou as forças que resultaram no impeachement do Presidente da República Fernando Collor. Mas o projeto pelo qual se imortalizou foi, provavelmente, a AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A FOME , A MISÉRIA E PELA VIDA, movimento em favor dos pobres e excluídos.
Teve vários livros publicados como:
• Estreitos Nós (crônicas). Editora Garamond
• Em Defesa do Interesse Nacional (coletânea de textos de vários autores como Fernanado Henrique Cardoso.
• No Fio da Navalha (biografia). Revan.
• A Cura da Aids (ensaios sobre AIDS e Política de Saúde). Relume Dumará.
• Ética e Cidadania (entrevista). Editora Moderna.
• A Lista de Alice (crônicas). Companhia das Letras.
• Como Se Faz Análise de Conjuntura. Editora Vozes.
• O Estado e o Desenvolvimento Capitalista no Brasil (em co-autoria com Carlos A. Afonso). Editora Paz e Terra.
• A zeropéia (infanto-juvenil). Editora Moderna.
• A Centopéia que Pensava (infanto-juvenil). Editora Moderna.
• A Centopéia Que Sonhava (infanto-juvenil). Editora Salamandra.
• A Centopéia Que Cantava(infanto-juvenil). Editora Salamandra.

Dizia que como soropositivo, se via forçado a "comemorar a vida todas as manhãs".

Outras frases marcantes e ainda atuais:

“O Brasil tem fome de ética e passa fome em conseqüência da falta de ética na política”.

“Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda, sim, pela sua cultura”.

“Democracia serve para todos ou não serve para nada”.

Neste ano, a Comissão de Anistia concedeu à família de Betinho uma indenização mensal, além de um montante retroativo, em razão da perseguição política sofrida por ele durante a ditadura militar, comprovada por documentos encontrados nos arquivos do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).

Em 2006 foi lançado o filme TRÊS IRMÃOS DE SANGUE, sobre a vida dos irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário. Idealizado pelo músico Marcos Souza, filho de Chico Mário, o filme teve direção e roteiro de Ângela Patrícia Reniger.

Depois de tantos anos resolvi escrever como eu o conheci, após encontrar na internet a carta que ele deixou para sua esposa, Maria Nakano, com quem viveu 27 anos e teve 02 filhos.

Esta carta eu recomendo principalmente para os que duvidam do verdadeiro amor entre um homem e uma mulher.

A carta foi lida um ano após sua morte pelo ator Jonas Bloch durante uma cerimônia no Centro Cultural do Banco do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro.




UMA CARTA PARA MARIA


“Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito.
É uma declaração de amor.
Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade.
Nos conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia um clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.
Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo. Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!
O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo! Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.
Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a “cair”. Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar discurso político…
Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era verdade, o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu! com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixo, abóbora, cozido, feijoada. Um festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca.
Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.
Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos; viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o IBASE funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.
Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A AIDS. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico.
Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou um amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.
Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um “senão” ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi. Desde os tempos da cólera, da não esperança, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.
Um dos maiores problemas da AIDS é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.
Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.
Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito.

Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada.

Te amo para sempre,
Betinho,
Itatiaia, janeiro de 1997″

Fonte sobre sua biografia: Wikipédia


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